O dia em que descobri que... eu...nem sei...
Aquele dia mudou tudo na minha vida. Nunca me tinha passado pela cabeça. Andava esta pessoa (eu), posta em sossego, com a leveza de quem saltita de nenúfar em nenúfar, na certeza de que a minha personalidade ponderada me livrava daqueles detalhezinhos irritantes que caracterizavam as personalidades alheias. Eu... que, em tempos, terminei uma relação porque a pessoa, de cada vez que bebia alguma coisa, por cada gole, fazia "aaaaahhhhh". Cada gole, cada "aaaaaahhhh". Eu que revirava os olhos sempre que ouvia alguém a mastigar de boca aberta. Sim, porque quem mastiga de boca aberta faz sons, como todos sabemos, e nem precisamos de olhar para saber que aquele bolo alimentar se está a constituir naquela boca à frente de todos; eu... que abanava a cabeça em reprovação sempre que algum português dizia "Seriously?!?!?!?" ou "Whatever..." em vez de "A sério?!?!?!?" ou qualquer tradução prática de whatever. Eu que mudava de lugar no metro cada vez que alguém roía as unhas ostensivamente à minha frente; eu... que dava um empurrãozinho, digamos, ao de leve nas escadas rolantes àqueles que decidiam ficar a descansar do lado esquerdo, que toda a gente sabe que é para circular... Todas estas coisas me irritavam, e irritam, e posso jurar que é por causa delas que me começam a nascer cabelos brancos...
Mas, naquele dia, descobri... algo que... Bem, aqui vai.
Estávamos nós num aeroporto de uma cidade europeia, à espera do avião que nos traria de volta. A minha amiga lia e eu saltitava de felicidade porque o meu mp3, que tinha rádio, tinha, sabe-se lá como e de forma meio fanhosa, apanhado uma estação de rádio que passava música dos anos 80. Percebi que a minha amiga, por algum motivo, não tinha ficado muito contente com este acontecimento, mas pensei que fosse impressão minha, que estivesse cansada. De repente, um aviso (na língua do país em questão): "o avião com destino a Lisboa vai partir com uma hora de atraso". Por mim, tudo bem. Não havia nada a fazer, não havia por que me chatear. Tinha um café ali ao lado, tinha a minha música... estava tudo bem. Mas a minha amiga ficou muito agitada. Disse-lhe "Tem calma, é só uma hora. Não é o fim do mundo". Ao que ela, de olhos esbugalhados e voz esganiçada de irritação, respondeu: "Pois! É só mais uma hora! É só mais uma hora a ouvir-te cantarolar!! Vais cantarolar o tempo todo, não vais? Especialmente no avião, quando já não tiveres música!! Vais cantarolar, não vais???" E aí estava: eu era irritante. Eu cantarolava...
A notícia caíu-me na alma como quando uma pedra parte um vidro. Também eu era irritante... Quantas vezes teria irritado outros? Quantas vezes teriam mudado de lugar, revirado os olhos por causa do meu hábito irritante?
Que relações teriam ficado pelo caminho, que amizades teria perdido? Perguntei-lhe: "Mas isso é irritante??" Ela: "É!! É muito irritante!!" A minha alma estava parva. Nunca ninguém, nem ela, que era a minha melhor amiga, me tinha dito nada... Disse-lhe que ia tentar parar.
Mas não parei. Em vez disso, abracei este meu hábito irritante porque parece que estou sempre alegre. E, embora, de vez em quando, pareça uma pessoa maluquinha a cantarolar baixinho, cantarolarei. Continuarei a cantarolar. Faz-me feliz. Cantarolarei enquanto a voz não me doer... E continuarei a revirar os olhos a todos quantos me irritarem, mesmo que os seus hábitos irritantes os façam felizes. Cantarolarei e revirarei.